Cancer.

escrito, reescrito mil vezes e enfim publicado por Yolanda



Eles pediram para eu escrever aqui nesse caderno. Eles, os homens de jaleco branco. É assim que eu os chamo, apesar da mamãe ter dito que eles são anjos; disse que eles vão me ajudar a voar até o céu. Foi no mesmo dia em que meu cabelo começou a cair. Eu chorei, mas a mamãe disse que é para que as minhas asas nasçam e eu possa voar. Elas ainda não nasceram. É por isso que eu odeio esse lugar.


A única coisa que eu gosto daqui é a Ana. Ela é melhor que a mamãe, porque a mamãe só me visita uma vez por mês, e a Ana me visita toda noite. Diz que entra pelo vento, pelas frestas da janela. E eu acredito na Ana. A gente brinca, a gente conversa, a gente faz tudo junto. Ontem a gente desenhou um monte de coisas nas paredes. Eu desenhei minha mamãe; ela desenhou um menino e uma menina se beijando. Pensei que fossem os papais dela, mas a Ana disse que éramos nós, juntos, depois que eu saísse daqui. Eu até achei meio engraçado, porque o boneco tinha cabelo e eu não tenho. Mas a Ana, ela sim, tem cabelo: é castanho, comprido e encaracolado. Ela disse que é porque as asas dela já nasceram – por isso ela não precisa morar no hospital que nem eu. Então eu chorei, porque já faz anos que eu estou aqui e as minhas asas não crescem, e a única coisa que eu quero é poder voar como a Ana. Mas ela disse que eu não preciso me preocupar, que elas virão um dia. E aí ela me beijou. Que nem no desenho.


Hoje de manhã os homens de jaleco branco vieram aqui. Olharam para os desenhos com caras fechadas, saíram; logo voltaram com outro homem de jaleco branco. Eu o conheço: é o homem das perguntas. Às vezes ele aparece no meu quarto e começa a me perguntar um monte de coisas estranhas, e é por isso que odeio o homem das perguntas. Mas hoje ele foi muito bonzinho comigo: me deu este caderno, disse que era um presente. Também disse que era para que eu escrevesse ou desenhasse nele tudo o que eu sentisse. É isso o que eu estou fazendo agora. É legal.


Ah, a Ana chegou. Ela adorou o caderno, as folhas coloridas e tudo mais. Ela só não gostou do que está escrito nas primeiras páginas. Disse que saber que eu estou triste a deixa triste; mas, que se eu quero tanto assim voar como ela, eu não preciso esperar minhas asas, que ela tem uma idéia melhor. Aí ela arrancou uma página e fez um avião. Pediu para que eu subisse nele. Eu a convidei para vir junto – respondeu que não, que iria na frente para me guiar. Então ela pulou pela janela.


Eu estou com muito medo da altura, do asfalto lá embaixo, do vento; mas agora tenho que pular. E eu acredito na Ana!